A GLOBALIZAÇÃO E SEUS BENEFÍCIOS: UM CONTRAPONTO AO PESSIMISMO
Paulo Roberto de Almeida
Site: revista eletrônica Espaço Acadêmico, junho 2004
link: http://www.espacoacademico.com.br/037/37pra.htm
Uma controvérsia politicamente enviesada
O debate em torno do processo de globalização no Brasil (se de
fato ele existe) tem sido singularmente marcado por uma espécie de unilateralismo
conceitual, no qual o fenômeno tende a ser geralmente caracterizado de
modo negativo, como se ele tivesse a capacidade de concentrar, de um lado, todos
os vícios sociais e todas as torpezas morais do capitalismo realmente
existente, sendo-lhe, na outra ponta, creditadas muito poucas virtudes econômicas,
se alguma. Paradoxalmente, tudo se passa como se um pensamento único
dominasse esse debate de idéias, impedindo de fato a expressão
de argumentos não conformes a essa visão negativa do processo.
Contrariamente ao que parece acreditar a coalizão dos altermundialistas
– que poderiam ser identificados, à falta de melhor termo, como
antiglobalizadores – não há, nem nunca houve, uma expressão
uniforme e singular dos argumentos, forças ou grupos que se posicionam,
de forma moderada ou aberta, em favor desse processo propriamente indomável
e incontrolável (e que eles, de maneira errônea, identificam como
representando um vago “consenso de Washington”).
Com efeito, não foi possível encontrar, após uma busca
bibliográfica, dois ou três ensaios sérios que enfatizassem
os aspectos positivos desse fenômeno tão vilipendiado quanto incompreendido.
A bem da verdade, quando se admite a ocorrência de tal possibilidade,
a situação vem geralmente acompanhada de uma qualificação
segundo a qual esse processo tende a excluir os países periféricos
(ou dependentes) de seus eventuais benefícios. Não que se pretenda
que a literatura “otimista” cante loas indevidas ou ditirambos gratuitos
a esse processo de transformação societal, cujos impactos são
tão complexos quanto contraditórios, envolvendo sempre, ao mesmo
tempo, conseqüências positivas e negativas. Mas a produção
acadêmica poderia contemplar, tão simplesmente, algumas das “bondades”
– no sentido espanhol do termo – trazidas pela globalização
no curso das últimas duas décadas (se tanto) de avanços
do “modo global de produção”. Ou então dedicar-se
a constatar os aspectos positivos, em termos econômicos, políticos
e sociais, dessas forças impessoais desencadeadas com redobrado vigor
após o término – entre 1989 e 1991 – da alternativa
socialista ao sistema capitalista de produção e de intercâmbio.
O que se tem, de fato – e que poderia, aliás, ser paradoxalmente
considerado como mais uma vitória da globalização –,
é uma reorganização global de velhas e novas forças
sociais antiglobalizadoras, tão contrárias ao “novo espírito
da época” como tinham sido, em suas respectivas épocas,
as forças do socialismo e do terceiro-mundismo. Uma comparação
perfunctória revelaria, a propósito, que a oposição
ao capitalismo ancienne manière nunca teve à sua disposição
tendências equivalentes e contrárias tão fortes e disseminadas
como essa coalizão global que hoje combate a globalização.
Do exame da literatura disponível, parece claro, pois, que a globalização
está longe de ser aceita de modo inquestionado em todas as partes, que
ela dificilmente é acolhida favoravelmente por líderes políticos,
mesmo numa típica sociedade capitalista, e que não se pode mesmo
esperar que ela seja saudada como eminentemente positiva pelos auto-proclamados
“filósofos sociais”. Ao contrário: ela ainda é
vista com desconfiança, quando não com uma certa ojeriza de princípio,
como se dela emanassem odores pestilenciais ou vírus nefastos à
boa saúde dos indivíduos e sociedades por ela tocados. Prova disso
é o imenso succès d’estime e de marketing editorial, junto
ao grande público (a começar pelo universitário), do livro
de um conhecido economista falsamente alternativo que traz por título,
justamente, a “globalização e seus malefícios”.
Do ponto de vista do grande público, acusações genéricas
contra a globalização merecem acolhida geralmente favorável
e acabam atuando como bode expiatório de dificuldades momentâneas
ou de crises estruturais enfrentadas por uma dada sociedade. Pouco se exige
dessas condenações in abstracto e sem possibilidade de recurso.
Elas não vêem sustentadas em provas empíricas, em dados
estatísticos relevantes, pesquisas de terreno, correlações
causais apoiadas em fatos e números, não são comprovadas
mediante alguma demonstração lógica nem são dotadas
de fundamentação histórica. Para todos os efeitos, elas
cumprem uma função justificatória, do tipo: “eis
a origem dos nossos problemas, ela se situa nas engrenagens da globalização”.
Existem, provavelmente, elementos psicológicos que explicam essa “fuga
da realidade” que o fenômeno da globalização provoca
em jovens idealistas e sinceramente devotados às causas humanitárias
e que pretendem construir um “outro mundo”. Menos compreensível
é a atitude de outros, menos jovens, que ressentem (com a força
de um transplante de órgãos) a perda das velhas certezas socialistas
e dos antigos projetos anti-capitalistas. Melhor deixar essa tarefa explicativa
aos “psicanalistas da globalização” – se é
que eles já apareceram no mercado – e limitar-se a analisar o problema
do ponto de vista dos argumentos de ordem econômica, com todas as limitações
que podem existir nessa disciplina que já foi chamada de dismal science,
ou ciência lúgubre.
A globalização provoca miséria e desigualdade?
Comecemos, como exemplo, por uma afirmação retirada de um documento
do Fórum Social Mundial, esse imenso congraçamento de ativistas
antiglobalização, a maior parte dos quais simples militantes,
mas animados por algumas figuras de proa que costumam ser chamadas, pela imprensa,
de “intelectuais”. Segundo um dos textos-base do movimento, “os
povos do Terceiro Mundo, assim como os setores pobres e excluídos dos
países industrializados, sofrem os efeitos devastadores da globalização
econômica e da ditadura de instituições internacionais como
o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os governos que servem aos seus interesses”,
isto é, aos da “globalização devastadora”.
De fato, a maior parte dos argumentos utilizados pelos opositores da globalização
se resumem a repetir – sem suporte nos números – a velha
cantilena do aumento do desemprego, das desigualdades dentro dos países
e entre eles, da predominância dos interesses mercantis contra os objetivos
sociais, da diminuição do papel do Estado como fonte de correção
das desigualdades introduzidas pelos mercados, da erosão das culturas
locais, da crescente renúncia de soberania nacional em face do crescimento
das regras multilaterais relativas a comércio, finanças, meio
ambiente e outras áreas regulatórias. Tem-se, pois, que a partir
da existência, da permanência ou do agravamento de problemas sociais
e econômicos – nem todos vinculados diretamente à globalização
– se extrai a conclusão simplista de que esse processo tem “efeitos
devastadores”.
Compreende-se a contundência verbal e o caráter peremptório
da argumentação, ainda que ambos carentes de um real embasamento
em dados de fato comprobatórios dos pretensos “efeitos devastadores”
da globalização (sempre apodada de “capitalista”):
afinal de contas, os promotores ou responsáveis por esse tipo de movimento
“social” parecem ser, em sua maior parte, aqueles mesmos órfãos
(ou viúvas) do socialismo ancienne manière, que tiveram de reciclar-se
rapidamente na antiglobalização ao se verem desprovidos de espaços
de manobra condizentes com as antigas pretensões à universalidade
concreta do modo de produção “alternativo” e sua alegada
adequação à “necessidade histórica”.
O que dizem eles, exatamente?: que os “povos do Terceiro Mundo”
(um imenso grupo de alguns bilhões de habitantes), “assim como
os setores pobres e excluídos dos países industrializados”
(uma categoria mais tangível, formada por apenas alguns milhões
de indivíduos), “sofrem os efeitos devastadores da globalização
econômica e da ditadura de instituições internacionais como
o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os governos que servem aos seus interesses”.
Seria isto verdade? Se o for, seria esta triste experiência compartilhada
por todos eles, conjuntamente, e ocorreu ela durante todo o tempo em que vem
se desenvolvendo a atual onda de globalização capitalista (grosso
modo, as duas últimas décadas de “neoliberalismo”,
como eles mesmos gostam de caracterizar)?
Para ajudar-nos a dar uma resposta a essa dúvida sobre a maléfica
globalização capitalista dispomos de um estudo sobre esse fenômeno
“devastador”, realizado por esse órgão “ditatorial”
que é o Banco Mundial: o relatório World Development Indicators
(WDI 2004, disponível no link: www.worldbank.org/data).
Trata-se de um conjunto estatístico de 800 indicadores econômicos
e sociais, organizados em 87 tabelas e seis seções (visão
global, população, meio ambiente, economia, Estados e mercados
e vínculos globais), que cobrem 152 economias e 14 grupos de países.
Se aceitarmos, como fazem muitos economistas e estudiosos dos problemas do desenvolvimento
e a quase totalidade dos governos dos países membros, que tais números
apresentam fiabilidade, somos obrigados, pelo menos, a considerar os argumentos
desse relatório, que vêm apoiados nesses números, dados,
estatísticas e indicadores diversos.
E o que dizem os números do Banco Mundial sobre os efeitos “devastadores”
da globalização? Que esse processo perversamente capitalista retirou,
nos vinte anos que vão de 1981 a 2001, mais de 400 milhões de
pessoas da miséria absoluta. Com efeito, os dados revelam uma queda no
número absoluto de pessoas que vivem com menos de um dólar por
dia nos países em desenvolvimento, de 1,5 bilhão em 1981 para
1,1 bilhão em 2001. A cifra de um dólar por dia denota o limite
da pobreza absoluta. Obviamente, hão de retorquir os antiglobalizadores,
essa situação aparentemente positiva esconde imensas desigualdades
entre os países. Na América Latina, por exemplo, como revela o
relatório, a pobreza só diminuiu marginalmente devido ao baixo
crescimento das economias na década de 1990. Por outro lado, a maior
parte daqueles 400 milhões de ex-miseráveis e agora novos pobres
encontra-se quase que exclusivamente na China e na Índia.
Quanto ao caráter “ditatorial” dos órgãos vilipendiados
pelos antiglobalizadores, soa pelo menos estranho que países tão
ciosos de sua soberania como a China e a Índia estejam entre seus membros
mais ativos, o primeiro, aliás, depois de muito pouco tempo (grosso modo,
os últimos vinte anos de globalização capitalista para
as instituições de Bretton Woods e menos de cinco anos para a
OMC). Quais foram os devastadores efeitos causados nesses dois países,
ou no próprio Brasil, para ficarmos com um país mais perto de
nós, pela presença nas e por meio de operações com
essas entidades “ditatoriais”? Para o Brasil, sabemos, por exemplo,
que o FMI realizou três operações de apoio financeiro preventivo
entre 1998 e 2003, pelos valores respectivos de 41,5 bilhões (com a participação
de vinte outros países membros), de 15 bilhões e de 30 bilhões
de dólares (inédito na história do FMI), este último
renovado pela metade do valor pelo atual governo adepto da soberania econômica
das nações em desenvolvimento. Quanto ao Banco Mundial e ao BID,
eles mantêm uma das maiores carteiras de negócios de todo o mundo
em projetos existentes no Brasil (nos três níveis da federação),
sendo os montantes apenas inferiores àqueles que o BNDES empresta anualmente
aos próprios agentes econômicos nacionais.
As desigualdades estruturais da globalização capitalista agravaram-se?
A globalização capitalista é um velho processo que remonta
provavelmente a Colombo, mas que foi revigorado do final do século XX,
depois de um “breve” intervalo histórico de aproximadamente
setenta anos, para dar tempo à não-globalização
socialista de testar sua eficiência relativa em matéria de finanças,
investimentos, comércio, inovação e repartição
de benefícios da riqueza. Hoje se sabe que os resultados foram e são
globalmente negativos, daí porque a saída de cena do modo alternativo
de produção. Em todo caso, a globalização capitalista
trouxe provavelmente mais riqueza material e progressos sociais do que jamais
ocorreu em fases precedentes da economia mundial, como atestam os dados sobre
acumulação de renda nas mais diversas regiões do planeta.
Os casos de estagnação ou mesmo de retrocesso – como
podem ser os itinerários de muitos países latino-americanos e
africanos – não são, de verdade, insucessos da globalização,
mas sim retraimentos e fracassos dos próprios países em lograr
uma inserção bem sucedida na economia mundial.
Esse processo multiforme e desigualmente distribuído nas regiões
por ele tocados dá nitidamente a impressão de estar associado
a um crescimento das desigualdades dentro dos países e entre as regiões,
o que porém não foi confirmado por estudos especializados. Parece
um “fato” que as tendências da economia mundial, no final
do século XX e início do XXI, foram mais no sentido do aprofundamento
das divergências entre as economias nacionais do que na direção
da convergência esperada pela maior parte dos economistas. Em outros termos,
as nações que já eram relativamente ricas em 1900 tornaram-se
ainda mais afluentes em 2000, enquanto que as menos avançadas progrediram
igualmente, mas em menor escala e menos rapidamente do que as primeiras. Não
há contudo evidências conclusivas nesse sentido, uma vez que as
estatísticas deveriam enfatizar mais o lado das rendas individuais do
que as médias nacionais, e mais o consumo (ou a disposição
de bens) do que a renda nominal.
Alguns estudos conduzidos nos anos 1990 por órgãos da ONU como
o PNUD pareciam confirmar a “tendência” das últimas
décadas do século XX no sentido do aumento das diferenças
entre nações desenvolvidas e países em desenvolvimento,
assim como das desigualdades no acesso a bens e a distância acumulada
entre os rendimentos dos grupos sociais. Essas “evidências”
foram contudo corrigidas e reavaliadas com base em estudos econométricos
conduzidos em fase mais recente.
Deve-se lembrar, preliminarmente, que o aprofundamento das defasagens entre
regiões e entre os estratos sociais já estava em curso no período
anterior à aceleração da globalização. A
evolução no que respeita as regiões teve menos a ver com
o chamado “intercâmbio desigual” — uma vez que várias
economias periféricas, entre elas o Japão, a Coréia, o
próprio Brasil e mais recentemente a China, conseguiram diminuir a defasagem
— e mais com a estruturação material das sociedades e economias,
seu substrato humano (em termos de educação e capacitação
profissional), o meio ambiente institucional (estabilidade das regras, respeito
aos contratos, segurança dos direitos de propriedade contra práticas
abusivas de “extração de renda” por grupos de interesse
ou “despoupança” por parte do Estado) e a intensidade de
vínculos com a economia internacional, de onde provêm os estímulos
à competição e os ganhos de produtividade e de know-how,
mediante transferências diretas e indiretas de tecnologia.
Fundamentalmente, as desigualdades na distribuição de renda entre
os países, que se acentuaram nas últimas décadas, foram
mais devidos aos diferenciais de produtividade entre as economias do que ao
próprio movimento da globalização. De fato, estudos econométricos
como o já citado do Professor Sala-i-Martin, tendem a demonstrar que
a defasagem entre os países ricos e os pobres no século XX pode
ser explicada, antes de mais nada, pelos diferenciais de produtividade entre
economias nacionais apresentando diferentes ritmos históricos de desempenho
relativo e ostentando fontes diversas de crescimento.
À medida que os países se afastam das estruturas uniformemente
agrícolas de um passado não muito distante, a amplitude do leque
entre as economias de serviços de “inteligência” —
e portanto de alta renda — e as simples economias agrícolas de
subsistência ou de exportação de produtos primários
tende naturalmente a aumentar. Estas últimas, no entanto, são
mais pobres hoje não em virtude da globalização —
que tende a mobilizar recursos e, portanto, a distribuir renda em escala planetária
— mas a despeito dela, e mais precisamente em virtude de deficiências
de crescimento e na administração de suas políticas econômicas
nacionais e setoriais (políticas agrícola, industrial, de ciência
e tecnologia etc.), que levaram-nas a marcar passo, quando não a regredir
(como no caso da África), na luta competitiva do capitalismo global.
Na maior parte das vezes, a questão da distância entre níveis
absolutos de riqueza se reduz a um simples problema de ritmos de crescimento
sustentado. Quando o Brasil cresceu a taxas sustentadas nos anos 1950 a 1970,
a distância em relação ao PIB dos EUA diminuiu. Entre 1957
— data decisiva no processo de modernização brasileira,
com a implantação da indústria automobilística —
e 1986, a expansão do PIB brasileiro foi de 594,9%, contra um aumento
acumulado de apenas 150,4% para o PIB dos EUA. Em conseqüência, a
distância que separava o PIB per capita brasileiro do americano se viu
encurtada. Em contraste, a diminuição do crescimento na década
seguinte fez com que a distância fosse novamente alongada, considerando-se
também o crescimento sustentado da economia americana nos anos 1990.
Em termos de paridade de poder de compra, uma medida mais adequada para se estimar
a riqueza relativa das economias, as distâncias diminuíram dramaticamente,
por exemplo, entre a China e os Estados Unidos nas últimas duas décadas
do século XX, em vista do crescimento sustentado e a altas taxas que
o gigante asiático apresentou desde o início das reformas tendentes
a aproximar a economia chinesa das regras de mercado e do sistema internacional
(ingresso na OMC, por exemplo). A Índia, menos populosa, mas reconhecidamente
capitalista em face de uma China ainda formalmente socialista, realizou menos
progressos em termos de crescimento per capita, provavelmente por ter seguido
uma estratégia menos globalizada.
A globalização capitalista do século XX não teve
como missão histórica provocar uma homogeneização
entre os povos e países, muito embora ela possa fazê-lo no longo
prazo, ao nível da estrutura produtiva e dos perfis laborais, num ritmo
provavelmente mais medido em termos de gerações humanas. A missão
econômica da globalização foi a de produzir maior quantidade
de bens a custos continuamente mais baixos, no que deve-se reconhecer sua tremenda
eficiência relativa, maior em todo caso do que os sistemas econômicos
baseados na alocação administrativa de recursos.
Se grande parte desse processo — isto é, volumes crescentes de
comércio de mercadorias, de intercâmbio de serviços e de
investimentos recíprocos — se deu preferencialmente entre os próprios
países desenvolvidos e com uma gama reduzida de países emergentes,
isso não derivou de nenhuma discriminação a priori contra
certos povos ou nações, mas tão simplesmente em função
da equação “custo-oportunidade”, conhecida dos economistas:
alguns países, por razões de soberania nacional, colocaram-se
voluntariamente à margem do processo de globalização, aumentando
o lado do “custo” em relação aos ganhos de “oportunidade”.
No que se refere, por outro lado, à concentração de rendas
no interior dos países, cabe lembrar que as variáveis desse processo
são muito mais amplas do que a simples exposição de um
país à interdependência global e que o Brasil, por exemplo,
tornou-se um campeão das desigualdades sociais numa fase de notório
fechamento externo da economia e de acirrado protecionismo comercial: o coeficiente
de Gini (medida da concentração de renda) já era bastante
elevado — em comparação com países apresentando níveis
similares de desenvolvimento — quando o Brasil vivia em relativo isolamento
econômico, com uma autonomia produtiva de cerca de 95% e uma tarifa alfandegária
média de 45%.
Finalmente, são poucos ou relativamente escassos, para não dizer
inexistentes, os estudos consistentes – isto é possuindo um certo
recuo de tempo – que permitam tirar conclusões positivas ou definitivas
a esse respeito, ou seja, fornecendo evidências empíricas que demonstrem
cabalmente algum tipo de vínculo estrutural entre a marcha da globalização
e o aumento das desigualdades sociais ou setoriais. Outras variáveis,
que não apenas a liberalização comercial ou a inserção
nos circuitos globais, estão em jogo nos recentes processos comprovados
de aumento da concentração de rendas, como nos Estados Unidos
e na Grã-Bretanha, os dois exemplos mais notórios de “políticas
liberais”, que teriam conduzido a um maior nível de concentração
de renda nos estratos mais abastados da população. Dentre essas
variáveis, que precisariam ser computadas nos estudos de avaliação
do impacto da globalização, figuram, por exemplo, a extensão
e a cobertura das políticas domésticas com impacto social indireto
(saúde, educação, habitação etc.) ou direto
na área distributiva (alocações sociais, progressividade
tributária), que muitas vezes independem do grau de abertura da economia
para produzirem efeitos eventualmente nefastos do ponto de vista da distribuição
dos rendimentos.
Os benefícios da globalização: redução da
miséria e das desigualdades
Contrariamente às alegações relativas aos efeitos supostamente
distorcivos ou concentradores da globalização, estudo efetuado
pelo professor da Universidade de Columbia (Nova York) Xavier Sala-i-Martin,
“The disturbing ‘rise’ of global income inequality”
(National Bureau of Economic Research, disponível no link: www.nber.org/w8904),
revela tendências mais positivas em termos de renda e riqueza. O fato
é que ocorreu uma redução geral das desigualdades de renda
entre 1980 e 1998: tendo estabelecido funções para a distribuição
mundial de renda, o professor Sala-I-Martin constatou que, se em 1970 o mundo
apresentava uma larga fração da população num renda
modal próxima da linha de pobreza — isto é, subsistência
à razão de um dólar por dia —, essa fração
começou a definhar e o mundo hoje se encaminha para uma “larga
classe média”. Tanto as taxas de pobreza quanto o número
de pobres decresceram dramaticamente: o critério de um dólar por
dia caiu de 20% em 1970 para apenas 5% em 1998 da população mundial,
enquanto que pelo critério de dois dólares por dia a taxa reduziu-se
de 44% a 8%. Em termos de “volume” humano, isso representou uma
subtração de aproximadamente 400 milhões de pessoas ao
“estoque mundial” de pobres entre aqueles dois anos. Ou seja, o
“dramático e perturbador” aumento da pobreza e nas desigualdades
no período recente da globalização simplesmente não
ocorreu.
A desigualdade que pode também ter crescido em alguns países —
seria o caso dos EUA, por exemplo — não foi suficiente para reduzir
o movimento global no sentido da redução das desigualdades entre
os países. O principal fator dessa diminuição foi representado,
mas não totalmente, pelo rápido crescimento da renda de 1,2 bilhões
de cidadãos chineses. Apenas um problema nesse quadro global: a situação
da África, cujo itinerário social foi catastrófico nas
duas últimas décadas. Se o continente africano não voltar
a crescer nos próximos anos, a tendência à convergência
se altera: a China, a Índia, os países da OCDE e os demais emergentes
de renda média vão divergir das tendências africanas e a
desigualdade na distribuição de renda, computada globalmente,
voltará a crescer rapidamente.
Uma de suas descobertas mais importantes refere-se a que a maior parte da desigualdade
distributiva existente é explicada pelas diferenças de renda per
capita entre os países, antes que pelas diferenças dentro dos
países. Se as desigualdades dentro dos países cessassem miraculosamente,
cerca de 70% das desigualdades no mundo seriam mantidas, o que recomenda, portanto,
uma estratégia de aumento da taxa de crescimento econômico nos
países pobres, em especial na África, onde estão 95% dos
pobres do mundo. De modo geral, os índices de pobreza experimentaram,
sob qualquer critério, um declínio persistente: caíram
três vezes, trazendo o número de pobres de 20%, em 1970, para apenas
6% da população mundial.
Em termos desagregados, as evidências são interessantes do ponto
de vista das regiões e países. O exemplo mais ilustrativo da tendência
global revelada pelo estudo do professor Sala-I-Martin é obviamente o
da Ásia, onde os índices de pobreza caíram de forma espetacular.
A China e a Índia, ainda socialistas nos anos 1970, foram os países
que mais progrediram do ponto de vista da diminuição da pobreza
e da convergência em relação aos indicadores de países
mais avançados. Nos EUA, por sua vez, simplesmente inexistem aquelas
faixas de renda correspondendo a pessoas que vivem com 1 ou 2 dólares
por dia, que constituem as medidas padrões utilizadas pelos organismos
internacionais para medir a pobreza. A Indonésia representou a mais dramática
mudança na história econômica da humanidade, com redução
sensível da pobreza e da desigualdade, mesmo a despeito da crise financeira
de 1998, quando o PIB foi reduzido em mais de 15%. A América Latina não
foi uma região particularmente feliz em termos de diminuição
do número de pobres, embora tivesse conhecido, igualmente, uma certa
redução da pobreza, mas em décadas anteriores. No Brasil,
os progressos efetuados nos anos 1970 foram freados nos anos 1980 e, nos anos
1990, com exceção de alguns anos, os ricos melhoraram mais do
que os pobres.
Os casos de aumento absoluto da pobreza e dos níveis de desigualdade
ocorreram nos países africanos, ao passo que nos ex-países socialistas
(em transição para o capitalismo nos anos 1990 e que sofreram
verdadeiro colapso econômico nessa época) aumentou muito a desigualdade,
sem que a pobreza, porém, tivesse se expandido de forma brutal. No continente
africano, a Nigéria, o exato oposto da Indonésia, é o caso
mais dramático de aumento simultâneo da pobreza e das desigualdades,
muito embora os seus ricos — que caberia identificar em termos de rent-seeking
associado à economia petrolífera — tenham conseguido obter
ganhos sensíveis durante o período, dada, provavelmente, a elevada
corrupção ali existente
Uma das dificuldades sublinhadas por Sala-i-Martin para definir as linhas de
pobreza no mundo e nos países está representada pela escolha de
indicadores relativos à renda ou ao consumo, este mais fiável
como retrato das realidades individuais, dada a natural propensão das
pessoas a subdeclararem seus ganhos efetivos para escapar dos longos braços
das autoridades fiscais. Isso está bem refletido no Brasil, por exemplo,
pelos dados relativos ao imposto sobre transferências bancárias
(CPMF), que descreve um quadro mais próximo das transações
reais do que as declarações de rendas de pessoas físicas.
Daí talvez os números igualmente altos para uma estimativa do
número de pobres no Brasil, baseados em pesquisas relativas à
renda disponível, invariavelmente colocada nos menores níveis
possíveis. Mas é um fato que a desigualdade brasileira na distribuição
de renda, que tem causas estruturais e alocativas bem conhecidas, não
é boa para o crescimento econômico e, portanto, para a diminuição
do número de pobres.
Não há, por outro lado, nenhuma correlação unívoca
entre crescimento e desigualdade, historicamente e na atual conjuntura. Pode-se
ter todas as combinações possíveis: crescimento com igualdade,
não crescimento com aumento das desigualdades e seus equivalentes com
sinais trocados. O mesmo ocorre, num certo sentido, na relação
entre democracia e o crescimento, pois que diferentes regimes políticos
apresentam desempenhos bem diversos em termos de crescimento econômico
e mesmo de desenvolvimento social, sem que se possa traçar uma correlação
muito estrita entre ambas as variáveis. Talvez o elemento relevante,
aqui, seja o fato de um regime autoritário ser (ou não) market-friendly,
com o que ele variará em seu desempenho relativo, podendo, no caso positivo,
ser mais ou menos propenso ao crescimento (como de certa forma ocorreu no Brasil
durante a ditadura militar).
As pesquisas do Professor Sala-i-Martin confirmam estudos conduzidos pelo economista
indiano Surjit Bhalla, para quem a globalização não resultou
em taxas menores de crescimento, nem em aumento da pobreza ou da desigualdade,
mas ao contrário, numa diminuição sensível das desigualdades
mundiais, dos índices de pobreza e um crescimento da renda dos estratos
mais pobres, relativamente aos mais ricos (ver seu livro Imagine There’s
No Country: Poverty, Inequality and Growth in the Era of Globalization.
Washington: Institute for International Economics, 2002; e o trabalho: http://poverty.worldbank.org/files/12978_Surjit_Bhalla_Two_Policy_Briefs.doc
).
Os trabalhos de Surjit Bhalla são importantes pela sua contribuição
ao avanço dos métodos de pesquisa em terrenos clássicos
da economia política como o da distribuição de renda e
riqueza (que não são obviamente sinônimos). Mas ele também
não deixa de tocar nas implicações políticas de
suas teses, como a questão de saber quem perde com a globalização.
De um modo geral, as evidências sobre a convergência entre sistemas
econômicos nacionais parecem agora bem estabelecidas, sobretudo do ponto
de vista da equalização de salários em níveis similares
de produtividade, o que deve beneficiar os mais capacitados no mundo em desenvolvimento
(que alguns chamam de burguesia, ou de elite, do Terceiro Mundo). Os únicos,
talvez, a perderem absolutamente seriam os trabalhadores pouco qualificados
dos países desenvolvidos e uma difusa classe média que sente que
lhe serão retirados os benefícios do welfare State. São
exatamente estes grupos que compõem o grosso da massa mobilizada pelos
movimentos da anti-globalização: “velhos” sindicalistas
e jovens de classe média. Alguma surpresa nisto?
Paulo Roberto de Almeida
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